domingo, 23 de setembro de 2012

Durante a madrugada


Estávamos nus estirados sobre a cama, em silêncio. Olhávamos nos olhos, procurando adivinhar os pensamentos que rondavam nossas mentes. Havíamos a pouco, mergulhado no prazer intenso, procurando em cada parte do outro, segundos a mais de prazer, de volúpia infinita. Nossas carnes, já suadas, testemunharam nosso frêmito de desejo. A televisão ligada ao acaso mostrava a cena de um casal em vias de se separarem, mas nós não estávamos acompanhando o conflito deles. A cena mostrava uma mulher enrolada num lençol, com os cabelos desgrenhados e os olhos aflitos. O homem falava ruidosamente sem demonstrar amor ou cuidado por ela. O cheiro de sexo inundava nosso quarto. Consumimos todo o conteúdo de uma garrafa de água mineral que suava gelada no ambiente quente pelo prazer. A penumbra contribuía decisivamente para que o clima de pecado se instaurasse definitivamente ali. Enquanto isso as lágrimas rolavam grossas e aos borbotões pelo rosto da mulher prestes a ser abandonada pelo amante. Seu marido suspeitava da traição e a ameaçava abandonar. O amante, por sua vez, tencionava abandoná-la porque não suportava a ideia de ter que desposá-la. Queria-a somente como amante. Um estranho paradoxo para ela que se perguntava como isso lhe acontecera. Como o desejo lhe entorpecera os sentidos daquela maneira? Enquanto isso, eu e Amália cochilávamos sonolentos e embaraçados um no outro.
Fui despertando do último êxtase lentamente. Levantei, fui à varanda, fiquei espreitando a cidade que dormia sob a luz da lua fraca e enevoenta que pairava no oeste. Amália chamava-me para juntar-me a ela na cama. Eu precisava ficar só por um momento. Parecia que o sexo já não resolvia certas necessidades nossas. Ela, carinhosa e dependente, chegou-se a mim, tocou-me nas costas, puxou-me pelo pescoço e ali, na varanda, nua e completa, ofereceu-me a boca que beijei intensamente. Um beijo é um mistério que procuro interpretar a cada instante. Somente a intensidade do ato me revela suas nuances mais sutis. Certa vez, junto a uma mulher que nem sabia o nome, num momento de desejo pronunciado, beijei-lhe com estrépito e mordisquei-lhe os lábios inferiores. Passei a língua por entre os lábios e as gengivas e ela gemeu de prazer. A partir desse dia, percebi o quão interessante e revelador pode ser um beijo bem elaborado.
Eu já podia ouvir o casal da TV discutindo a bom som, barulhos de tapas e safanões percorrendo o quarto. Ele foi embora e bateu a porta vigorosamente. Eu me permitia pensar como se fosse o protagonista daquela cena, excluindo obviamente as agressões físicas que eles trocavam, porque penso que uma mulher deve ser respeitada a cada momento. Mesmo que as discussões se desenrolem doloridas, áridas e severas, o respeito à outra parte deve se fazer presente sob pena de esfriarmos as fibras de nosso ser com o embrutecimento do espírito e a deturpação moral. Amália era a mesma mulher doce e atraente de sempre. O que havia mudado era meu eu. Eu já a conhecia como a mim mesmo, e por alguma razão isso me incomodava. O que eu conhecia me causava medo e apreensão. Não entendia o motivo disso por mais que me esforçasse para me analisar. Preciso de um analista, pensava eu, tomando um gole do champanhe que já rolava quente pela garganta. A mansidão do mar não permite que os perigos se mostrem audazes. As tempestades não se fazem nas marolas. E meu espírito precisava da tormenta para que algo acontecesse. A metamorfose humana acontece nas situações tempestuosas e comigo não parecia ser diferente.
Amália havia voltado para a cama e sorvia goles infinitos de água mineral. Estava falando consigo mesma, numa intensidade que eu ouvia da varanda. 
- Calma, sua esfomeada. 
- Esfomeada não porque não estou comendo nada, estou bebendo... 
Eu sorria com pena de mim mesmo e com pena dela. Ela não merecia a separação. Seus olhinhos brilhavam de felicidade perto de mim. Até seus cabelos esvoaçavam com mais beleza por conta da sua alegria. Eu a via nua, seios perfeitos, quadris desenhados cuidadosamente. As nádegas, grandes, tinham uma curvatura suave e perfeita. Percebi um fio de cabelo colado pelo suor em sua bunda. Ela estava feliz à minha espera para celebrarmos nosso amor novamente. Tomei o restante da taça, olhei novamente a cidade e entrei. Joguei uma água no rosto, mirei-me no espelho e voltei para a cama. Como um cão faminto pulei sobre Amália e procurei esquecer aquela loucura que eu acalentava idiotamente. Beijei-lhe com sofreguidão enquanto olhava em seus olhos entreabertos. Procurei seus seios que palmilhei com a língua, milímetro por milímetro. Sentia o cheiro da sua pele. Invadi-lhe com fome de amor. Os movimentos logo se tornaram evidentes e audíveis. Ficamos nos olhando durante todo o ato. Cariciei-lhe os cabelos e cheirava-os, acuradamente. Mudamos de posição e passamos a espancar nossos corpos de quatro. Amália gemia e chorava de prazer implorando-me mais um orgasmo. Explodi por fim enquanto ela gozava mais uma vez. Estendeu-se na cama e eu caí ao seu lado exausto, satisfeito. Ela começou a me jurar amor eterno e me pedir para nunca abandoná-la. Como que num turbilhão, a velha idéia de deixá-la voltou a tomar parte de meus pensamentos. Ela me acariciava o peito, me beijava o rosto. Seu corpo nu era algo suavemente belo. Suas ancas perfeitas estavam avermelhadas pelo impacto repetitivo no meu quadril. Eu simplesmente não tinha coragem de dizer-lhe o que pensava.
Fico até hoje tentando pactuar certos pensamentos com certos sentimentos. Curioso como pode duas vertentes tão íntimas e irmãs se divergirem tanto dentro de um mesmo coração. Sentimento e razão realmente são irmãos, mas quando se desentendem destroem vidas e lares. Amália nunca havia me enganado. Amava-me de fato. O problema é que eu não podia mais estar com ela embora a amasse como a mim mesmo.
Rodei os canais no controle remoto procurando algum programa que não sabia qual. A cena do casal se separando havia me impressionado sobremaneira. Amália estava deitada de lado, ancas expostas, seios a mostra e me olhava com uma alegria inexplicável. Eu procurava não demonstrar que eu percebia o que dizia aquele olhar confidente. Achei finalmente um programa sobre a vida e obra de Antonio Vivaldi. Ao fundo tocava uma de suas obras mais famosas: As quatro estações. Essa obra me lembrava de uma época saudosa de minha vida em que eu morava numa cidadezinha do interior de Minas. Naquela época eu estava descobrindo um novo jeito de viver a vida. Lia livros e mais livros diariamente, de forma febril. Num mesmo ano eu havia lido mais de cento e quarenta livros. Acordava com o barulho de gado mugindo ao longe na vargem. Trabalhava da forma mais aplicada possível no serviço público e voltava para casa para entregar-me novamente á leitura e à música. Vivia para uma mulher com dedicação quase que religiosa. Eu sempre executava Vivaldi no meu aparelho de som. Época maravilhosa aquela. Veneziano por nascimento, Antonio Lucio Vivaldi era o primogênito dos sete filhos do casal Gionanni Battista Vilvaldo, e cAmila Calicchio.  Ordenado padre em 1703, ficou impedido de celebrar a missa em decorrência de uma doença crônica, provavelmente asma. Foi nomeado mestre de violino do "Ospedalle della Pietà", uma instituição veneziana que acolhia crianças órfãs, famosa por seu conservatório musical. Pensava comigo mesmo: Vivaldi ficou enclausurado durante anos para se tornar padre e foi impedido por causa de uma doença que adquiriu. Foi por uma razão alheia a sua vontade, mesmo estando em condições plenas de fazê-lo. Tal qual eu, que nutria o sentimento mais sublime por Amália, mas uma razão determinante me impedia de ficar ao seu lado o resto de meus dias.
Finalmente, olhei Amália nos olhos e disse:
- Não podemos mais estar juntos, meu amor.
- O que? O que houve?
- Não posso mais.
- Não posso entender sua decisão. Há pouco nos amamos nessa mesma cama. O que você está querendo fazer com o nosso amor?
- Não agüento mais essa situação.
- Você tem que entender que não estarei casada com ele para sempre. Ele não me dá o divórcio, apesar de minha insistência diária.
- O que me mata, Amália, é esse sentimento enorme que tenho por você. O ciúme que me derrota. Todas as vezes que você volta para casa eu bebo novamente um cálice amargo de insegurança e ciúme.
- Espere mais uns dias que resolvo tudo.
- Não posso mais. Estou te esperando resolver isso há quatro anos. Quero-a como minha mulher, como minha amante. Quero-te totalmente.
- Podemos fugir. Que me diz?
- Fugir? Meu desvio moral de amar uma mulher casada já é o suficiente para me condenar no tribunal de minha própria consciência.
- Ninguém nos acharia.
- Ninguém pode fugir de si mesmo.
- Lá vem você de novo com essas palavras soltas.
- Quem solta minhas palavras é você. Eu procuro corrigir meus procedimentos morais, mas você me corrói a ética que construí por toda uma vida.
- Você me ama. É por isso que não me deixa. – Percebi o sorriso no canto de sua boca quando ela disse isso.
- Eu te amo como amo minha própria vida. Amo você com uma intensidade descomunal. Mas você não brilha apenas no meu céu.
- E como vamos resolver isso, meu amor?
- Você precisa deixá-lo ou deixar-me, você pode resolver isso dessas duas maneiras.
- E minha filha? Ele nunca me deixaria partir com ela.
- Sei que sua filha seja alguém que te permita desviar uma decisão. Mas o medo de perdê-la para ele não pode ser razão de uma curva no seu caminho.
- O que fazer? – Notei que as lágrimas desciam generosas dos olhos. Sua voz havia embargado de vez. Soluçava e chorava compulsivamente.
- Venha para mim. Traga sua filha. Abandone sua casa. Vamos ter um amor com aprovação moral. A retidão das decisões e da forma de viver são importantes para mim.
- Ele não nos deixaria viver em paz.
- Isso eu resolvo.
- Está bem. Então me dá um beijo e me diz que nunca vai me deixar.
- Você fica hoje e não volta mais para casa?
- Sim, meu amor.
E nos abraçamos com carinho e ficamos a nos amar, madrugada a dentro, protegidos pelos deuses sublimes da madrugada. 




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