Estávamos nus
estirados sobre a cama, em silêncio. Olhávamos nos
olhos, procurando adivinhar os pensamentos que rondavam nossas mentes. Havíamos
a pouco, mergulhado no prazer intenso, procurando em cada parte do outro,
segundos a mais de prazer, de volúpia infinita. Nossas carnes, já suadas,
testemunharam nosso frêmito de desejo. A televisão ligada ao acaso mostrava a
cena de um casal em vias de se separarem, mas nós não estávamos acompanhando o
conflito deles. A cena mostrava uma mulher enrolada num lençol, com os cabelos
desgrenhados e os olhos aflitos. O homem falava ruidosamente sem demonstrar
amor ou cuidado por ela. O cheiro de sexo inundava nosso quarto. Consumimos
todo o conteúdo de uma garrafa de água mineral que suava gelada no ambiente
quente pelo prazer. A penumbra contribuía decisivamente para que o clima de
pecado se instaurasse definitivamente ali. Enquanto isso as lágrimas rolavam
grossas e aos borbotões pelo rosto da mulher prestes a ser abandonada pelo
amante. Seu marido suspeitava da traição e a ameaçava abandonar. O amante, por
sua vez, tencionava abandoná-la porque não suportava a ideia de ter que
desposá-la. Queria-a somente como amante. Um estranho paradoxo para ela que se
perguntava como isso lhe acontecera. Como o desejo lhe entorpecera os sentidos
daquela maneira? Enquanto isso, eu e Amália cochilávamos sonolentos e
embaraçados um no outro.
Fui
despertando do último êxtase lentamente. Levantei, fui à varanda, fiquei
espreitando a cidade que dormia sob a luz da lua fraca e enevoenta que pairava
no oeste. Amália chamava-me para juntar-me a ela na cama. Eu precisava ficar só
por um momento. Parecia que o sexo já não resolvia certas necessidades nossas.
Ela, carinhosa e dependente, chegou-se a mim, tocou-me nas costas, puxou-me
pelo pescoço e ali, na varanda, nua e completa, ofereceu-me a boca que beijei
intensamente. Um beijo é um mistério que procuro interpretar a cada instante.
Somente a intensidade do ato me revela suas nuances mais sutis. Certa vez,
junto a uma mulher que nem sabia o nome, num momento de desejo pronunciado,
beijei-lhe com estrépito e mordisquei-lhe os lábios inferiores. Passei a língua
por entre os lábios e as gengivas e ela gemeu de prazer. A partir desse dia,
percebi o quão interessante e revelador pode ser um beijo bem elaborado.
Eu
já podia ouvir o casal da TV discutindo a bom som, barulhos de tapas e safanões
percorrendo o quarto. Ele foi embora e bateu a porta vigorosamente. Eu me
permitia pensar como se fosse o protagonista daquela cena, excluindo obviamente
as agressões físicas que eles trocavam, porque penso que uma mulher deve ser
respeitada a cada momento. Mesmo que as discussões se desenrolem doloridas,
áridas e severas, o respeito à outra parte deve se fazer presente sob pena de
esfriarmos as fibras de nosso ser com o embrutecimento do espírito e a
deturpação moral. Amália era a mesma mulher doce e atraente de sempre. O que
havia mudado era meu eu. Eu já a conhecia como a mim mesmo, e por alguma razão
isso me incomodava. O que eu conhecia me causava medo e apreensão. Não entendia
o motivo disso por mais que me esforçasse para me analisar. Preciso de um
analista, pensava eu, tomando um gole do champanhe que já rolava quente pela
garganta. A mansidão do mar não permite que os perigos se mostrem audazes. As
tempestades não se fazem nas marolas. E meu espírito precisava da tormenta para
que algo acontecesse. A metamorfose humana acontece nas situações tempestuosas
e comigo não parecia ser diferente.
Amália
havia voltado para a cama e sorvia goles infinitos de água mineral. Estava
falando consigo mesma, numa intensidade que eu ouvia da varanda.
-
Calma, sua esfomeada.
-
Esfomeada não porque não estou comendo nada, estou bebendo...
Eu
sorria com pena de mim mesmo e com pena dela. Ela não merecia a separação. Seus
olhinhos brilhavam de felicidade perto de mim. Até seus cabelos esvoaçavam com
mais beleza por conta da sua alegria. Eu a via nua, seios perfeitos, quadris
desenhados cuidadosamente. As nádegas, grandes, tinham uma curvatura suave e
perfeita. Percebi um fio de cabelo colado pelo suor em sua bunda. Ela estava
feliz à minha espera para celebrarmos nosso amor novamente. Tomei o restante da
taça, olhei novamente a cidade e entrei. Joguei uma água no rosto, mirei-me no
espelho e voltei para a cama. Como um cão faminto pulei sobre Amália e procurei
esquecer aquela loucura que eu acalentava idiotamente. Beijei-lhe com sofreguidão
enquanto olhava em seus olhos entreabertos. Procurei seus seios que palmilhei
com a língua, milímetro por milímetro. Sentia o cheiro da sua pele. Invadi-lhe
com fome de amor. Os movimentos logo se tornaram evidentes e audíveis. Ficamos
nos olhando durante todo o ato. Cariciei-lhe os cabelos e cheirava-os,
acuradamente. Mudamos de posição e passamos a espancar nossos corpos de quatro.
Amália gemia e chorava de prazer implorando-me mais um orgasmo. Explodi por fim
enquanto ela gozava mais uma vez. Estendeu-se na cama e eu caí ao seu lado
exausto, satisfeito. Ela começou a me jurar amor eterno e me pedir para nunca
abandoná-la. Como que num turbilhão, a velha idéia de deixá-la voltou a tomar
parte de meus pensamentos. Ela me acariciava o peito, me beijava o rosto. Seu
corpo nu era algo suavemente belo. Suas ancas perfeitas estavam avermelhadas
pelo impacto repetitivo no meu quadril. Eu simplesmente não tinha coragem de
dizer-lhe o que pensava.
Fico
até hoje tentando pactuar certos pensamentos com certos sentimentos. Curioso
como pode duas vertentes tão íntimas e irmãs se divergirem tanto dentro de um
mesmo coração. Sentimento e razão realmente são irmãos, mas quando se
desentendem destroem vidas e lares. Amália nunca havia me enganado. Amava-me de
fato. O problema é que eu não podia mais estar com ela embora a amasse como a
mim mesmo.
Rodei
os canais no controle remoto procurando algum programa que não sabia qual. A
cena do casal se separando havia me impressionado sobremaneira. Amália estava
deitada de lado, ancas expostas, seios a mostra e me olhava com uma alegria
inexplicável. Eu procurava não demonstrar que eu percebia o que dizia aquele
olhar confidente. Achei finalmente um programa sobre a vida e obra de Antonio
Vivaldi. Ao fundo tocava uma de suas obras mais famosas: As quatro estações.
Essa obra me lembrava de uma época saudosa de minha vida em que eu morava numa
cidadezinha do interior de Minas. Naquela época eu estava descobrindo um novo
jeito de viver a vida. Lia livros e mais livros diariamente, de forma febril.
Num mesmo ano eu havia lido mais de cento e quarenta livros. Acordava com o
barulho de gado mugindo ao longe na vargem. Trabalhava da forma mais aplicada
possível no serviço público e voltava para casa para entregar-me novamente á leitura
e à música. Vivia para uma mulher com dedicação quase que religiosa. Eu sempre
executava Vivaldi no meu aparelho de som. Época maravilhosa aquela. Veneziano
por nascimento, Antonio Lucio Vivaldi era o primogênito dos sete filhos do
casal Gionanni Battista Vilvaldo, e cAmila Calicchio. Ordenado padre
em 1703, ficou impedido de celebrar a missa em decorrência de uma doença
crônica, provavelmente asma. Foi nomeado mestre de violino do "Ospedalle
della Pietà", uma instituição veneziana que acolhia crianças órfãs, famosa
por seu conservatório musical. Pensava comigo mesmo: Vivaldi ficou enclausurado
durante anos para se tornar padre e foi impedido por causa de uma doença que
adquiriu. Foi por uma razão alheia a sua vontade, mesmo estando em condições plenas
de fazê-lo. Tal qual eu, que nutria o sentimento mais sublime por Amália, mas
uma razão determinante me impedia de ficar ao seu lado o resto de meus dias.
Finalmente,
olhei Amália nos olhos e disse:
-
Não podemos mais estar juntos, meu amor.
-
O que? O que houve?
-
Não posso mais.
-
Não posso entender sua decisão. Há pouco nos amamos nessa mesma cama. O que
você está querendo fazer com o nosso amor?
-
Não agüento mais essa situação.
-
Você tem que entender que não estarei casada com ele para sempre. Ele não me dá
o divórcio, apesar de minha insistência diária.
-
O que me mata, Amália, é esse sentimento enorme que tenho por você. O ciúme que
me derrota. Todas as vezes que você volta para casa eu bebo novamente um cálice
amargo de insegurança e ciúme.
-
Espere mais uns dias que resolvo tudo.
-
Não posso mais. Estou te esperando resolver isso há quatro anos. Quero-a como
minha mulher, como minha amante. Quero-te totalmente.
-
Podemos fugir. Que me diz?
-
Fugir? Meu desvio moral de amar uma mulher casada já é o suficiente para me
condenar no tribunal de minha própria consciência.
-
Ninguém nos acharia.
-
Ninguém pode fugir de si mesmo.
-
Lá vem você de novo com essas palavras soltas.
-
Quem solta minhas palavras é você. Eu procuro corrigir meus procedimentos
morais, mas você me corrói a ética que construí por toda uma vida.
-
Você me ama. É por isso que não me deixa. – Percebi o sorriso no canto de sua
boca quando ela disse isso.
-
Eu te amo como amo minha própria vida. Amo você com uma intensidade descomunal.
Mas você não brilha apenas no meu céu.
-
E como vamos resolver isso, meu amor?
-
Você precisa deixá-lo ou deixar-me, você pode resolver isso dessas duas
maneiras.
-
E minha filha? Ele nunca me deixaria partir com ela.
-
Sei que sua filha seja alguém que te permita desviar uma decisão. Mas o medo de
perdê-la para ele não pode ser razão de uma curva no seu caminho.
-
O que fazer? – Notei que as lágrimas desciam generosas dos olhos. Sua voz havia
embargado de vez. Soluçava e chorava compulsivamente.
-
Venha para mim. Traga sua filha. Abandone sua casa. Vamos ter um amor com
aprovação moral. A retidão das decisões e da forma de viver são importantes
para mim.
-
Ele não nos deixaria viver em paz.
-
Isso eu resolvo.
-
Está bem. Então me dá um beijo e me diz que nunca vai me deixar.
-
Você fica hoje e não volta mais para casa?
-
Sim, meu amor.
E
nos abraçamos com carinho e ficamos a nos amar, madrugada a dentro, protegidos
pelos deuses sublimes da madrugada.