A alegria
sangrou no dia em que a tristeza floriu. Uma era a amante da outra. Depois da
divisão primordial entre elas, outros sentimentos entraram no rol do paradoxo
confuso e imaterial. Todos os corações passaram a acreditar que a maldade era
força intrínseca à Substância Maior.
Quem nunca se
sentiu feliz em mentir? A mentira era o dia e a falsidade era a noite. Nunca elas se contrapuseram, apesar de serem
tão iguais e congruentes. Se a mentira pedia o sangue, a falsidade lhe beijava
o rosto porque não poderia lhe morder o coração. Depois de muitos séculos o
próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a mentira é
melhor que a falsidade. Os inimigos declarados são mais sinceros.
Quem nunca se
sentiu feliz em trair? A traição era o norte, e a cupidez era o sul. Nunca
puderam entender que elas eram filhas do mesmo ninho. A traição se satisfazia
com as lágrimas, mas a cupidez que era conhecida por ambição queria sempre
mais. Depois de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a
outra. E entendeu que a traição é melhor que a ambição. Porque uma ação se
detém na sua consumação, mas a ambição permite que a consumação do ato seja
apenas o prenúncio de outro ato.
Quem nunca se
sentiu feliz em ser ingrato? A ingratidão era o tênue e a escassez era o
denso. Nunca se tornaram miscíveis no
recipiente do coração humano. A ingratidão sorria ao sangue do ultraje depois
do bem praticado, mas a escassez queria que as ingratidões causassem o maior
dano possível em poucas ações. Depois de muitos séculos o próprio homem
descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a ingratidão é melhor que a
escassez, porque se tudo lhe falta, nada lhe contém, e a escassez pode agir sem
obstáculos à sua imensa potência, e concorrer para a falta de tudo, mesmo do que
parece insano.
Quem nunca s
sentiu feliz em ser trágico? A tragédia era o início e a severidade era o fim.
Nunca se complementaram apesar de se aproximarem incessantemente. A tragédia
comprazia-se no sofrimento de quem suporta a desgraça que arde e faz sofrer,
mas a severidade sempre julgava que a tragédia era a comédia, e que os pontos
de vista eram particulares e sempre se podia sorrir do sangue derramado. Depois
de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu
que a tragédia era melhor que a severidade, porque se o fato trágico causa dor
e medo de sua repetição (e esta não é certa que se se repita), e a severidade é
conhecida pela sua renovação e recrudescimento.
Sempre se julga mais pesadamente o que mais se convive, mas menos se
conhece na mesma medida que o tempo escorre.
E antes que os
choques constantes pudessem aumentar sua proporção ao infinito, antes que esses
sentimentos pudessem arruinar a vida na terra, o amor, com toda a superioridade
que sua autoridade lhe empresta, fechou a caixa de Pandora e não permitiu que a
lama se confundisse ao sândalo, que o deletério se travestisse de perfume
nobre, que o lodo se disfarçasse de chocolate. O amor tem o poder de frear o ímpeto
do mal. E o amor começou a mostrar para o homem que a mentira não pode ser
melhor que a falsidade, que a traição não pode ser melhor que a cupidez, que a
ingratidão não pode ser melhor que a escassez, que a tragédia não pode ser
melhor que a severidade.
O amor foi o único que teve a permissão de se
misturar para se tornar invencível. E assim, se misturou ao bem. E desde esse
dia, apesar dos sentimentos ruins flutuarem pelo mundo, o amor cura as chagas
abertas pela mentira, pela falsidade, pela traição, pela cupidez, pela
ingratidão, pela escassez, pela tragédia e pela severidade. E o bem combate as
filhas pérfidas que resultaram da satânica gestação entre todos eles até o fim
dos dias, quando haverá só o bem, o amor, a felicidade e a eternidade.