segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O outro lado do reverso


A alegria sangrou no dia em que a tristeza floriu. Uma era a amante da outra. Depois da divisão primordial entre elas, outros sentimentos entraram no rol do paradoxo confuso e imaterial. Todos os corações passaram a acreditar que a maldade era força intrínseca à Substância Maior.
Quem nunca se sentiu feliz em mentir? A mentira era o dia e a falsidade era a noite.  Nunca elas se contrapuseram, apesar de serem tão iguais e congruentes. Se a mentira pedia o sangue, a falsidade lhe beijava o rosto porque não poderia lhe morder o coração. Depois de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a mentira é melhor que a falsidade. Os inimigos declarados são mais sinceros.
Quem nunca se sentiu feliz em trair? A traição era o norte, e a cupidez era o sul. Nunca puderam entender que elas eram filhas do mesmo ninho. A traição se satisfazia com as lágrimas, mas a cupidez que era conhecida por ambição queria sempre mais. Depois de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a traição é melhor que a ambição. Porque uma ação se detém na sua consumação, mas a ambição permite que a consumação do ato seja apenas o prenúncio de outro ato.
Quem nunca se sentiu feliz em ser ingrato? A ingratidão era o tênue e a escassez era o denso.  Nunca se tornaram miscíveis no recipiente do coração humano. A ingratidão sorria ao sangue do ultraje depois do bem praticado, mas a escassez queria que as ingratidões causassem o maior dano possível em poucas ações. Depois de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a ingratidão é melhor que a escassez, porque se tudo lhe falta, nada lhe contém, e a escassez pode agir sem obstáculos à sua imensa potência, e concorrer para a falta de tudo, mesmo do que parece insano.
Quem nunca s sentiu feliz em ser trágico? A tragédia era o início e a severidade era o fim. Nunca se complementaram apesar de se aproximarem incessantemente. A tragédia comprazia-se no sofrimento de quem suporta a desgraça que arde e faz sofrer, mas a severidade sempre julgava que a tragédia era a comédia, e que os pontos de vista eram particulares e sempre se podia sorrir do sangue derramado. Depois de muitos séculos o próprio homem descobriu que uma não era a outra. E entendeu que a tragédia era melhor que a severidade, porque se o fato trágico causa dor e medo de sua repetição (e esta não é certa que se se repita), e a severidade é conhecida pela sua renovação e recrudescimento.  Sempre se julga mais pesadamente o que mais se convive, mas menos se conhece na mesma medida que o tempo escorre.
E antes que os choques constantes pudessem aumentar sua proporção ao infinito, antes que esses sentimentos pudessem arruinar a vida na terra, o amor, com toda a superioridade que sua autoridade lhe empresta, fechou a caixa de Pandora e não permitiu que a lama se confundisse ao sândalo, que o deletério se travestisse de perfume nobre, que o lodo se disfarçasse de chocolate. O amor tem o poder de frear o ímpeto do mal. E o amor começou a mostrar para o homem que a mentira não pode ser melhor que a falsidade, que a traição não pode ser melhor que a cupidez, que a ingratidão não pode ser melhor que a escassez, que a tragédia não pode ser melhor que a severidade.
O amor foi o único que teve a permissão de se misturar para se tornar invencível. E assim, se misturou ao bem. E desde esse dia, apesar dos sentimentos ruins flutuarem pelo mundo, o amor cura as chagas abertas pela mentira, pela falsidade, pela traição, pela cupidez, pela ingratidão, pela escassez, pela tragédia e pela severidade. E o bem combate as filhas pérfidas que resultaram da satânica gestação entre todos eles até o fim dos dias, quando haverá só o bem, o amor, a felicidade e a eternidade.

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