sábado, 14 de abril de 2012

Coisas do coração - 1


O relógio cravava sete horas quando um ônibus surgiu na rua asfaltada que cortava o bairro das Quitérias, que ficava na região afastada da cidade. Joana olhava loucamente para o relógio que sempre estava dez minutos adiantado, pois já havia perdido a hora milhares de vezes. De quando em quando olhava para os lados para ver se o ônibus que chegava era o que precisava apanhar. Como sempre, depois de vinte minutos além do horário, estacionava a sua frente um ônibus lotado, com pessoas de todos os matizes se apertando e se acotovelando. Joana pensava no mecânico, com raiva, por ter atrasado a entrega do seu carro novamente. O cheiro disforme e nauseabundo que exalava de dentro do ônibus, enjoava o olfato de Joana, a ponto de ela ter que saltar bem antes do ponto do seu trabalho, por receio de passal mal perto de todos. Já na empresa, esbaforida, Joana cumprimentava, como sempre, os colegas que a olhavam e invejavam a jovialidade que efervescia dela, no auge dos seus quarenta anos. É que ela vivia seus dias com a certeza de que o amor é o que tempera a vida, e por isso tem que ser vivida devagar. Joana tinha o hábito de sorrir um sorriso franco e branco, que lembrava uma criança de cinco anos sorrindo ao ver seu ursinho preferido.
- Minha filha, até quando você vai roubar a cena quando chega na empresa? Dizia o Seu Patrício que era o chefe da repartição e era apaixonado por Joana.
- Eu, Seu Patrício? E ria como que convidando o chefe para celebrar um dia de alegria e de luz pela frente.
- Eu ainda te mando embora, sua doida. E Seu Patrício saía andando com a dificuldade que os anos lhe trouxeram.
Joana sentia uma certa pena de Seu Patrício que era uma pessoa adorável, mas que dedicara toda uma vida atrás de uma mesa de repartição pública cuidando da compra de insumos para a empresa de eletricidade local. Disso tudo não teve reconhecimento da chefia, já que não titubearam em promover a encarregado geral um garoto de vinte e poucos anos que colocaria pilha nova na repartição, segundo a chefia de Belo Horizonte, mas todos sabiam que o garoto era pupilo do manda chuva da empresa de energia.
Em sua sala, Joana abria seu computador toda manhã, e antes que iniciasse seu expediente normal, conferia seus e-mails, lia suas páginas em sites de relacionamentos e abria seu programa de mensagens instantâneas para reencontrar velhos amigos da faculdade ou mesmo alguma pessoa interessante com quem pudesse conversar sobre algum assunto de seu interesse, porque em seu convívio ninguém entendia nada sobre música clássica, vinhos ou arte barroca. Nesse dia, quando Joana abriu uma sala de bate papo online, foi imediatamente acionada por um tal Malbec, o qual muito sutilmente, iniciou uma conversa muito interessante com ela. Conversaram pouco tempo, mas de tudo que falaram, Joana sentiu algo diferente nas palavras daquele homem, algo que lhe estremeceu as fímbrias mais recônditas do seu ser. Deve ser bobagem de quem está sozinha, dizia ela, fechando o programa e iniciando sua rotina normal de trabalho. Quando o dia começava a anunciar seu fim, quando o relógio atropelava os ponteiros, o expediente terminava e Joana saía pela rua, leve, solta, ávida por encontrar suas amigas e dissipar a sede acumulada durante o dia, num barzinho com música ao vivo. Lá, Suzana e Marta lhe aguardavam já com uma cerveja gelada sobre a mesa e conversando sobre amenidades da vida.
- Nossa, Joana, pensei que você não viria mais! Disse Suzana.
- Eu estava esperando vocês duas lá na repartição. Como não apareceram, vim pra cá pensando na vida e no meu fim de semana com minha filha.
- Fim de semana com a filha? Vai me dizer que vão para aquele hotel-fazenda em Itatiaia? Perguntou-lhe Marta.
- Hotel-fazenda de novo? Que nada. Vamos para o vale do Paraíba na casa do namorado dela. Você acha que deixo minha filha ir pra lá sozinha? E as três irromperam numa risada uniforme e ardida, a ponto de chamar a atenção de alguns fregueses do estabelecimento.
Os copos eram enchidos com cerveja, regularmente. Joana amava esse happy-hour com as amigas que sempre estavam de bem com a vida, e o bom humor que também lhe era peculiar, reinava na mesa. As paqueras ocorriam sem preconceito, já que as três eram descompromissadas. Suzana e Joana eram divorciadas e Marta perdera o marido num acidente trágico, há alguns anos.
Após pagar a corrida de taxi, já em casa, Joana sempre preparava seu jantar, conversava longamente com a filha sobre assuntos corriqueiros. Riam juntas e celebravam o laço espiritual que as unia desde há muitos séculos. Nesse dia particularmente, sua filha não estava em casa, havia ido para a aula de inglês que acabava de começar. Ao passar próximo a sua adega, que mantinha na sala de jantar, casualmente, deu com os olhos numa garrafa de vinho chileno, onde pôde ver escrito em letras trabalhadas e muito bem contornadas a palavra Malbec. Imediatamente lembrou-se do homem com quem conversara na repartição, pela internet, Malbec. Com certa ansiedade, foi para seu lap-top, e quando abriu, apressadamente, seu programa de mensagens, viu uma mensagem assinada por Malbec que dizia assim: “o vinho é o combustível que move o sangue nas veias, o sangue é o combustível que move os sentimentos em nós. O sentimento de carinho que nutri por você hoje, é prova que nossa conversa será eterna para mim e esse momento foi especial para nós dois, bem sei.” Como que uma adolescente, Joana sentiu um frêmito percorrer-lhe a face, sentiu uma faísca partir de seu peito e morrer nos pés. Não se confessou apaixonada naquele momento, mas certamente alguma coisa mudara dentro dela. Embora relutasse contra algo tão efêmero e sem importância, aparentemente, seus pensamentos volteavam, mas paravam sempre naquela mensagem doce e cheia de vida que seus olhos acabavam de ler. Isso é loucura! Dizia ela enquanto botava a manteiga na frigideira. Esse cara pode ser casado, não sei nada sobre ele. E colocava o contra-filé para passar. Acho que vou responder a mensagem, decidia afinal, deitando a garrafa de vinho sobre uma taça. Respondeu a mensagem educadamente, afetando a atração que ele lhe despertara. Enquanto respondia a mensagem ele acessou o programa e conversaram longamente aquela noite. Lá pelas tantas estava exausta e foi para a cama.

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