O relógio
cravava sete horas quando um ônibus surgiu na rua asfaltada que cortava o
bairro das Quitérias, que ficava na região afastada da cidade. Joana olhava
loucamente para o relógio que sempre estava dez minutos adiantado, pois já
havia perdido a hora milhares de vezes. De quando em quando olhava para os
lados para ver se o ônibus que chegava era o que precisava apanhar. Como
sempre, depois de vinte minutos além do horário, estacionava a sua frente um
ônibus lotado, com pessoas de todos os matizes se apertando e se acotovelando.
Joana pensava no mecânico, com raiva, por ter atrasado a entrega do seu carro
novamente. O cheiro disforme e nauseabundo que exalava de dentro do ônibus,
enjoava o olfato de Joana, a ponto de ela ter que saltar bem antes do ponto do seu
trabalho, por receio de passal mal perto de todos. Já na empresa, esbaforida, Joana
cumprimentava, como sempre, os colegas que a olhavam e invejavam a jovialidade
que efervescia dela, no auge dos seus quarenta anos. É que ela vivia seus dias
com a certeza de que o amor é o que tempera a vida, e por isso tem que ser
vivida devagar. Joana tinha o hábito de sorrir um sorriso franco e branco, que
lembrava uma criança de cinco anos sorrindo ao ver seu ursinho preferido.
- Minha filha,
até quando você vai roubar a cena quando chega na empresa? Dizia o Seu Patrício
que era o chefe da repartição e era apaixonado por Joana.
- Eu, Seu
Patrício? E ria como que convidando o chefe para celebrar um dia de alegria e
de luz pela frente.
- Eu ainda te
mando embora, sua doida. E Seu Patrício saía andando com a dificuldade que os
anos lhe trouxeram.
Joana sentia
uma certa pena de Seu Patrício que era uma pessoa adorável, mas que dedicara
toda uma vida atrás de uma mesa de repartição pública cuidando da compra de insumos
para a empresa de eletricidade local. Disso tudo não teve reconhecimento da
chefia, já que não titubearam em promover a encarregado geral um garoto de
vinte e poucos anos que colocaria pilha nova na repartição, segundo a chefia de
Belo Horizonte, mas todos sabiam que o garoto era pupilo do manda chuva da
empresa de energia.
Em sua sala,
Joana abria seu computador toda manhã, e antes que iniciasse seu expediente
normal, conferia seus e-mails, lia suas páginas em sites de relacionamentos e
abria seu programa de mensagens instantâneas para reencontrar velhos amigos da
faculdade ou mesmo alguma pessoa interessante com quem pudesse conversar sobre
algum assunto de seu interesse, porque em seu convívio ninguém entendia nada
sobre música clássica, vinhos ou arte barroca. Nesse dia, quando Joana abriu
uma sala de bate papo online, foi imediatamente acionada por um tal Malbec, o
qual muito sutilmente, iniciou uma conversa muito interessante com ela.
Conversaram pouco tempo, mas de tudo que falaram, Joana sentiu algo diferente
nas palavras daquele homem, algo que lhe estremeceu as fímbrias mais recônditas
do seu ser. Deve ser bobagem de quem está sozinha, dizia ela, fechando o
programa e iniciando sua rotina normal de trabalho. Quando o dia começava a
anunciar seu fim, quando o relógio atropelava os ponteiros, o expediente
terminava e Joana saía pela rua, leve, solta, ávida por encontrar suas amigas e
dissipar a sede acumulada durante o dia, num barzinho com música ao vivo. Lá,
Suzana e Marta lhe aguardavam já com uma cerveja gelada sobre a mesa e
conversando sobre amenidades da vida.
- Nossa,
Joana, pensei que você não viria mais! Disse Suzana.
- Eu estava
esperando vocês duas lá na repartição. Como não apareceram, vim pra cá pensando
na vida e no meu fim de semana com minha filha.
- Fim de
semana com a filha? Vai me dizer que vão para aquele hotel-fazenda em Itatiaia?
Perguntou-lhe Marta.
-
Hotel-fazenda de novo? Que nada. Vamos para o vale do Paraíba na casa do
namorado dela. Você acha que deixo minha filha ir pra lá sozinha? E as três
irromperam numa risada uniforme e ardida, a ponto de chamar a atenção de alguns
fregueses do estabelecimento.
Os copos eram
enchidos com cerveja, regularmente. Joana amava esse happy-hour com as amigas
que sempre estavam de bem com a vida, e o bom humor que também lhe era
peculiar, reinava na mesa. As paqueras ocorriam sem preconceito, já que as três
eram descompromissadas. Suzana e Joana eram divorciadas e Marta perdera o
marido num acidente trágico, há alguns anos.
Após pagar a corrida
de taxi, já em casa, Joana sempre preparava seu jantar, conversava longamente
com a filha sobre assuntos corriqueiros. Riam juntas e celebravam o laço
espiritual que as unia desde há muitos séculos. Nesse dia particularmente, sua
filha não estava em casa, havia ido para a aula de inglês que acabava de
começar. Ao passar próximo a sua adega, que mantinha na sala de jantar,
casualmente, deu com os olhos numa garrafa de vinho chileno, onde pôde ver
escrito em letras trabalhadas e muito bem contornadas a palavra Malbec.
Imediatamente lembrou-se do homem com quem conversara na repartição, pela
internet, Malbec. Com certa ansiedade, foi para seu lap-top, e quando abriu,
apressadamente, seu programa de mensagens, viu uma mensagem assinada por Malbec
que dizia assim: “o vinho é o combustível que move o sangue nas veias, o sangue
é o combustível que move os sentimentos em nós. O sentimento de carinho que nutri por você
hoje, é prova que nossa conversa será eterna para mim e esse momento foi
especial para nós dois, bem sei.” Como que uma adolescente, Joana sentiu um
frêmito percorrer-lhe a face, sentiu uma faísca partir de seu peito e morrer
nos pés. Não se confessou apaixonada naquele momento, mas certamente alguma
coisa mudara dentro dela. Embora relutasse contra algo tão efêmero e sem
importância, aparentemente, seus pensamentos volteavam, mas paravam sempre
naquela mensagem doce e cheia de vida que seus olhos acabavam de ler. Isso é
loucura! Dizia ela enquanto botava a manteiga na frigideira. Esse cara pode ser
casado, não sei nada sobre ele. E colocava o contra-filé para passar. Acho que
vou responder a mensagem, decidia afinal, deitando a garrafa de vinho sobre uma
taça. Respondeu a mensagem educadamente, afetando a atração que ele lhe
despertara. Enquanto respondia a mensagem ele acessou o programa e conversaram
longamente aquela noite. Lá pelas tantas estava exausta e foi para a cama.
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