Os contos que ora colo nestas páginas, todos até agora,
foram acontecidos de fato, ou saíram de meus devaneios [não se sabe ao certo].
O fato é que são de datas pretéritas em sua totalidade. O que buscamos na
memória nos leva novamente aos dias em que sucederam. A viagem pessoal de cada
um é fruto dos odores, das sensações, dos sabores experimentados naquele
determinado momento. O tempo passado entre o acontecimento [ou elucubração] e o
presente derrama manchas de tinta sobre os fatos e assim torna-os não tão fiéis
como poderiam ser caso tivessem acontecido um dia antes. Mesmo assim ouso
afirmar que meus transes passados estão muito sedimentados na memória por terem
envolvido sentimentos, volúpia, êxtase em sua expressão maior. O que narro aqui
hoje é recente, recente demais.
Na noite passada recebi uma visita muito especial. Fernanda!
Não a via há muito tempo. Como que por encanto a campainha tocou e era ela.
Cabelos louros, compridos até a cintura. Olhos faiscantes e olhar penetrante.
Seu perfume era amadeirado e marcante. Olhou-me com o verde dos olhos e sorriu tristemente
dizendo oi. Surpreso com a visita inesperada, respondi-lhe a saudação e
convidei-a para entrar.
Fernanda é dessas mulheres que não se esquece mesmo que se
passem mil anos. Conhecemo-nos há mais de dez anos num baile de formatura. Ela
estava acompanhando o irmão, e eu, uma amiga. Trocamos olhares compridos e lá
pelas tantas, estimulados pelo álcool servido regularmente conversamos como amigos de décadas. Finalizamos nossa noite no apartamento de Fernanda,
bebendo, rindo, fazendo amor. Namoramos por dois anos. Fomos cúmplices de
muitos momentos só nossos. Loucuras de amor, confidências muito íntimas e muito
particulares. Fomos o que se pode dizer duas almas gêmeas. Se tivéssemos a
maturidade de hoje estaríamos ainda juntos. A razão que nos afastou foi algo
besta e infantil.
Fernanda entrou, sentou-se no sofá e nos olhamos em
silêncio. Fui até ela e dei-lhe um abraço apertado e demorado.
- Que saudade de você, Nanda.
- Que falta senti de você
por todo esse tempo.
Ainda
abraçados, Fernanda disse-me que perdera o pai dois dias antes e por isso
resolveu procurar-me. Só eu saberia o que dizer, como lavar com bálsamo sua
ferida que sangrava. Ela precisava de cuidado e carinho. Conversei com ela
longamente sobre o que penso da vida, da morte, o que nos acontece depois da
passagem dessa vida para a outra. Tudo o que disse foi baseado no que constituí
como verdade inabalável ao meu espírito. Tenho essas premissas que sigo ortodoxamente
e vivo meus dias apoiado nelas. Fernanda, atenta, bebia cada uma de minhas
palavras e ora chorava, ora apenas me olhava.
Quando
ela se acalmou um pouco, tirei seus sapatos, deitei-a no sofá, fui à cozinha,
preparei-lhe um lanche leve, pois ela me dissera que não comia nada há dois
dias. Trouxe um suco de pêra com o lanche que ela comeu vorazmente. Enquanto
isso eu guardei seu carro na garagem. Convenci-a a dormir um pouco. Ela relutou
[ela é muito teimosa], mas aceitou o convite. Deitei-a em minha cama, deixei-a
à vontade. Por umas duas vezes na noite fui à porta do quarto e percebi sua
respiração calma e leve. Concluí que ela dormia mansamente. Deu-me vontade de
ir até ela, beijar-lhe a fronte e transmitir-lhe todo o cuidado e carinho que
sentia naquele momento. Lembrei do nosso passado, do nosso amor. Fomos felizes,
muito felizes durante o tempo em que convivemos juntos. Eu amava Fernanda de
uma forma muito calma. Nosso amor era um lindo pôr-do-sol imerso em mil tons de
cores mansas e calmas. Até hoje me pergunto o que seria de nós se estivéssemos ainda juntos.
Dormi
na sala. Hoje de manhã Fernanda tomou café comigo à mesa. Só de calcinha e
blusa, meias de algodão nos pés, ela estava nitidamente mais animada. Agradeci
pela confiança que depositou em mim, ao me procurar. Senti um carinho muito
grande por ela. Senti também vontade de fazer amor com ela. Afinal eu estava
com uma mulher semi nua diante de mim, mas ela estava fragilizada e necessitava
de compreensão. Além do mais, não aconteceu um clima que propiciasse isso.
Fernanda
terminou seu café e foi vestir-se. Surgiu na sala vestida e pronta para ir.
Olhamo-nos ternamente, nos abraçamos novamente de forma demorada e ela se foi.
Disse que voltava hoje a noite. Disse que quer estar comigo novamente.
A
vida é um mistério todos os dias. Ela nos coloca diante de situações
inesperadas, boas ou ruins. A essência da vida é descobrir como lidar, como
reagir diante de tais situações. Nosso aprendizado reside nisso. O amor é porta
aberta que deixamos no passado. Quando menos esperamos, ela se abre diante de
nós, fazendo-nos perceber que passado e futuro não existem. São meras invenções
humanas. Existe apenas as páginas de um livro infinito, em cujas linhas vamos
manchando com a tinta dos dias, marcando nossa história, vivendo nossos
momentos.
Amo
você Fernanda. Amar-te não significa que ficaremos juntos toda essa vida.
Significa que quando penso em você, meu espírito se sente feliz; que quando lhe
faço o bem, e vejo seu sorriso lindo vindo para mim, sou tomado de uma magia a
qual até hoje não soube descrever.
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